Por que a psicanálise não é um empreendimento terapêutico qualquer?
Lacan diz que a psicanálise não é um empreendimento terapêutico qualquer e que prova disso seria a não existência na história, de outra "teorização de uma ortopedia psíquica" que tenha durado mais do que 50 anos. E prossegue: "Do que depende a persistência da análise, seu lugar para além de sua utilização médica (...)?" (p.383).
A resposta de Lacan pode ser, para alguns, provocativa: "É que nela, impossível não perceber, há algo que concerne ao homem de uma maneira a um só tempo nova, séria e autêntica". Nova em sua contribuição, séria em seu alcance, autêntica pelo quê?" (p. 384). Autêntica por conta da "coisa freudiana", qual seja: o desejo! Daí que a clínica psicanalítica não é um empreendimento terapêutico qualquer e tem a sua persistência na história, porque lida com o desejo.
Mas o que é o desejo? Lacan diz, de cara, que o desejo é a sua interpretação. E o que isso quer dizer?
O ponto que eu quero chegar é na (des)construção da seguinte assertiva: quer dizer que o desejo "do homem" é a (sua) interpretação do "desejo do Outro".
Vamos com Lacan, primeiro de tudo: "não podemos de forma alguma considerar que o desejo funcione de maneira reduzida, normalizada, conforme às exigências de uma espécie de pré-formação orgânica" (p. 384). O que quer dizer que não seria papel do analista reconduzir o desejo a uma normalização, quando ele se afasta dessa pré-formação idealizada (e ideológica).
Vejam — e essas citações sempre me impressionam quando retorno neste capítulo —: "na experiência, o desejo se apresenta primeiro como perturbação. Ele perturba a percepção do objeto. (...) esse objeto, ele o degrada, desorganiza, avilta, em todo caso abala, chegando às vezes a dissolver aquele que o percebe, ou seja, o sujeito" (p.
385). E mais: "A experiência original do desejo aparece como contrária à construção da realidade. A busca que lhe é própria tem um caráter cego. Em suma, o desejo se apresenta como o tormento do homem" (p. 385).
Então — e o que pode surpreender muitos não adeptos à psicanálise —: "Com Freud aparece pela primeira vez uma teoria do homem cujo princípio está em contradição fundamental com o princípio hedonista" (p. 385).
Ou seja: a existência do desejo contraria uma ideia harmônica e otimista do desenvolvimento humano, uma vez que "não há acordo pré-formado entre o desejo e o campo do mundo" (p. 385). O que a análise nos mostra é que o desejo não tem a ver com nada que diga respeito a um "instinto primordial", e que até mesmo invalida essa hipótese. "A história do desejo se organiza num discurso que se desenvolve no insensato. Isso é o inconsciente" (p.386).
É como se pudéssemos dizer que, temos a causa freudiana (a sexualidade), e a coisa freudiana (que é o desejo), e no meio delas, entre elas, o inconsciente e a linguagem, ou melhor, o inconsciente estruturado como uma linguagem. E é sobre isso que a psicanálise se debruça e deve a sua persistência na história. Daí o embaraçamento do sujeito nas tramas discursivas que constituem o desejo, no que ele tem a ver com um atravessamento que perturba e constrói a própria realidade, que se assenta em uma substância muito peculiar e movediça, qual seja: o desejo do Outro.
Mas o mais interessante, e com o que lidamos o tempo todo na clínica: o desejo não é "da pessoa", mas uma interpretação (que a pessoa faz a nível inconsciente) em relação ao "desejo do Outro". E é disso que resulta o embaraço que a pergunta "Que queres" ajuda a vislumbrar.
O embaraço do sujeito no desejo, enquanto desejo do Outro, e que resulta em uma fantasia que lhe "estrutura" a realidade, o eu, e etc. Esse embaraço é constitutivo de uma posição subjetiva, porém não precisa ser definitivo, uma vez que é possível se embaraçar de outros modos... claro que a serem descobertos, inventados, e etc. e está aí um jeito de pensar no que Lacan vai chamar de "travessia do campo das identificações" lá no Seminário 11.
Mas aqui cabe uma observação: atravessar alguma coisa não quer dizer que seja possível se livrar totalmente do embaraço, mas que talvez, quem sabe, usar as suas teias, as suas tessituras, desse mesmo embaraço, de outros modos, na medida em que se "descobre" o que é possível abandonar, deixar em desuso, e o que não é.
Enfim, adoro o seminário Livro 6, e super recomendo!
Da próxima vez quero falar um pouco de gozo, me norteando por uma pergunta um tanto quanto provocativa (pra mim): levando em consideração que quem goza não é o eu (moi), nem o sujeito (je), quem goza?
Até!